Taipa de Mão

Na viagem em que se fundaria a primeira vila colonial do Brasil, na ilha nomeada São Vicente (1532), os portugueses da armada de Martim Afonso de Sousa encontraram não apenas povos originários, mas também conterrâneos e gente de Espanha, além de franceses no litoral: sejam náufragos, degredados, aventureiros, mercadores, alguns já viviam entre antigas culturas indígenas daquele Novo Mundo ao olhar europeu.

De São Vicente, rumo ao sul, os invasores encontraram um grande rio a desaguar no Atlântico: por ele, penetraram o interior meridional, subindo pelo chamado Vale do Rio Ribeira.

Progressivamente, o domínio de territórios ancestrais, habitat de culturas milenares, consolida-se pela colonização e escravatura, levada adiante pelos novos habitantes. Ainda no século XVI, as primeiras alianças lusoindígenas então constituídas — por exemplo do apoio do cacique tupiniquim Tibiriçá ao estabelecimento das primeiras vilas coloniais e aldeamentos jesuíticos — logo deram lugar a conflitos armados que, por fim, subjugavam os antigos povos daqueles territórios, como no contexto da chamada Confederação dos Tamoios 1. Em breve, outras gentes, de culturas distintas, muito antigas, arrancadas de paisagens distantes, desembarcavam aqui como escravos. E na violência do exercício da colonização européia sobre terras devassadas e gentes escravizadas, formava-se, a ferro e fogo, o Brasil.

Nas paisagens transformadas pelo poderio do colonizador que então domina vastos territórios, encontramos a morada muito comum daqueles tempos, disseminada pelos povoados que se fundavam, muitos deles sobre aldeias indígenas anteriores, outros mais pelos sertões, a partir do litoral. A casa construída em taipa de mão é um exemplo histórico deste processo e ainda remanesce no Brasil como técnica viva, sobretudo no ambiente rural de muitas comunidades, mas também em periferias urbanas, por exemplo de algumas cidades, em lugares favelados.

A técnica também é conhecida pelo termo pau-a-pique, uma referência aos paus verticais que compõem a trama ortogonal de madeira então preenchida por barro, a formar assim as paredes, que não são estruturais.

A taipa de mão está presente hoje no Vale do Ribeira, inscrita numa paisagem arcaica vivenciada. Paisagem que remanesce, em certo sentido, como resultante do fato da região ter permanecido à margem do progressivo desenvolvimento econômico de São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX. E muitas comunidades deste vale, até recentemente, subsistiam em relativo isolamento, pelas dificuldades de acesso.

Dos estudos realizados entre 1994 e 1998 no Vale do Ribeira, desenhos de observação como este, de 1995, ajudaram o arquiteto Silvio Cordeiro a compreender a construção do habitat em comunidades na paisagem rural daquela região. Vemos aqui uma típica casa em taipa de mão, próxima a cidade de Iporanga, em 1995. Na cobertura da parte baixa, onde situa-se a cozinha, o sapê (visto no corpo principal da morada) foi substituído por telhas de fibrocimento. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

Dos estudos realizados entre 1994 e 1998 no Vale do Ribeira, desenhos de observação como este, de 1995, ajudaram o arquiteto Silvio Cordeiro a compreender a construção do habitat das comunidades na paisagem rural daquela região. Vemos aqui uma típica casa em taipa de mão, na zona rural de Iporanga. Na cobertura da parte mais baixa, onde se localiza a cozinha, o sapê (visto no corpo principal da morada) foi substituído por telhas de fibrocimento. Desenho: © Silvio Luiz Cordeiro.

Tal morada, assim como grande parte da gente aqui nascida no contexto histórico da colonização, revela-se mestiça. Pois que o uso de paus, folhas e cipós utilizados conforme essa técnica de construir a habitação, materiais comumente usados em culturas construtivas indígenas no Brasil, não era estranho para certas etnias africanas, nem para alguns dos colonos portugueses, assim como outros europeus que aqui vieram viver e levantaram suas moradas, apropriando-se de materiais disponíveis nos sítios habitados.

O uso da terra como matéria-prima em técnicas construtivas, penetra o tempo. Encontra-se na cultura de antigas civilizações no mundo. Certos portugueses e africanos praticavam variantes da taipa de mão em suas comunidades de origem 2. No passado do vasto território que viria a ser o Brasil, não é improvável que existiram culturas nativas que utilizassem a terra na construção da morada, por exemplo de evidencias arqueológicas encontradas no chamado Teso dos Bichos (Ilha do Marajó). Todavia, ainda que sejam poucas as evidências da arqueologia, assim como aquelas encontradas em relatos históricos e etnográficos, a terra parece ter sido matéria-prima não tanto difundida entre etnias indígenas no construir da habitação aldeã, antes da chegada de europeus e depois de africanos que disseminaram o seu uso pelo território 3. A taipa de mão foi uma técnica compartilhada no contexto inicial da colonização propriamente dita, ou antes, ao tempo das incipientes feitorias construídas no litoral. A simplicidade relativa da técnica e a disponibilidade de matéria-prima próxima ou in situ, contribuiu para sua difusão ao tempo em que os colonos penetravam os sertões das terras indígenas.

Assim, a taipa de mão foi provavelmente a técnica construtiva mais utilizada no construir da casa comum brasileira, ainda hoje presente. Os procedimentos para executa-la são muito simples; pode-se levantar a morada em poucos dias. Os instrumentos essenciais se resumem, como vimos no estudo em comunidades caboclas do Vale do Ribeira, ao machado, facão e enxada. Do mato próximo, cortam-se madeiras para a estrutura; e, na versão mais rústica da casa, o capim (sapê, por exemplo) ou folhas de palmeiras, constituem a cobertura, geralmente em duas águas. A área retangular da casa é definida por quatro esteios fincados diretamente na terra, como vimos no Vale do Ribeira. Esteios intermediários nas laterais podem estar apoiados ou engastados em baldrames, paus dispostos diretamente na terra ou por sobre um alicerce de pedras. As paredes são executadas a partir de uma trama ortogonal de madeira: varas horizontais (que podem ser de bambu, como vimos em alguns exemplares) são amarradas com cipó, ou embira, aos paus verticais — daí o termo pau-a-pique , como foi dito por sua vez engastados ou apenas apoiados nos baldrames. A trama vertical assim formada é depois preenchida com barro pelas próprias mãos, em ambos os lados da parede que se preenche — daí o termo taipa de mão — sendo praticamente a última etapa da construção, já com a sombra da cobertura em dias de sol. Sob chuva, a cobertura protege o barreado, e o trabalho já feito não é perdido.

Esta casa, hoje desaparecida — levada numa das enchentes do rio Ribeira — fora uma das maiores da região. Construída no século XIX, a casa apresenta uma implantação singular, aproveitando-se o desnível do terreno. No levantamento, realizado em 1994, o espaço estava assim divido: acima, a morada da família e a cozinha; abaixo, abrigava-se ferramentas e canoas; o banheiro, nos fundos da casa, acima. As paredes eram de taipa de mão. A parte elevada era sustentada por baldrames apoiados em pilares de alvenaria de pedras e barro (cangicado). Na extremidade esquerda, a taipa fora substituída por tabuado. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

Esta casa, hoje desaparecida — levada numa das enchentes do rio Ribeira — fora uma das maiores da região. Construída no século XIX, apresenta uma implantação singular, aproveitando-se o desnível do terreno. No levantamento, realizado em 1994, o espaço estava assim divido: acima, a morada da família e a cozinha; abaixo, abrigava-se ferramentas diversas e canoas; o banheiro, nos fundos da casa, na parte elevada. As paredes eram de taipa de mão. A parte elevada era sustentada por baldrames apoiados em pilares de alvenaria de pedras e barro (cangicado). Na extremidade esquerda, a taipa fora substituída por tabuado. Desenho: © Silvio Luiz Cordeiro.

O Vale do Ribeira abriga evidências de culturas anteriores, reveladas nos testemunhos arqueológicos. Testemunhos também dos primeiros colonos que para lá foram, em sítios que abrigam estruturas há muito abandonadas, como aquelas relacionadas ao garimpo de ouro, em aluviões explorados séculos atrás.

O centro da imagem corresponde a um sítio arqueológico na margem esquerda do rio Iporanga (afluente do Ribeira), onde se encontram estruturas de um antigo garimpo de ouro, há muito abandonado. Hoje, existem ali estruturas de uma fazenda, onde se cria gado, inclusive búfalos. No entorno, casas de pequenos sitiantes. Desenho: Silvio Luiz Cordeiro.

O centro da imagem corresponde a um sítio arqueológico na margem esquerda do rio Iporanga (afluente do Ribeira), onde se encontram estruturas de um antigo garimpo de ouro, há muito abandonado. Hoje, existem ali estruturas de uma fazenda, onde se cria gado, inclusive búfalos. No entorno, casas de pequenos sitiantes. Desenho: © Silvio Luiz Cordeiro.

Paisagem histórica, abrigo de povoados como Ivaporunduva, Pilões, São Pedro, Nhunguara, entre tantos outros que lá existem e se reconhecem como quilombolas. Comunidades que estão, em sua maioria, situadas nos mesmos lugares selecionados pelos primeiros que ali viveram, muito antes da chegada do europeu.  Pontas de flecha, machados de pedra, fragmentos de cerâmica foram encontrados em alguns destes sítios e pelos próprios moradores, antes de qualquer arqueólogo prospectar aquelas terras, no interior do Vale do Ribeira.

Julho de 1997. A comunidade de Pilões vista do alto, a partir da chegada ao povoado. Em primeiro plano, a equipe desce para mais um dia na produção do documentário Taipa de Mão, Casa de Caboclo. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

Julho de 1997. O casario de Pilões visto do alto, a partir da chegada ao povoado quilombola. Em primeiro plano, a equipe desce para mais um dia na produção do documentário Taipa de Mão, Casa de Caboclo. Imagem: © Silvio Luiz Cordeiro.

A sociabilidade dos moradores ali rememora algo de uma vivência muito anterior, como no tempo dos primeiros colonos, e mesmo ainda mais distante no tempo, quando a vida aldeã indígena existira naquele território, assim como na memória aldeã de africanos que chegaram ao Brasil como escravos. Nos anos de estudo do habitat no Vale do Ribeira por Silvio Luiz Cordeiro no início dos anos 1990, viu-se que, em parte das comunidades, como naquelas relativamente isoladas, a vida ainda se realizava pela comunhão e prática de hábitos solidários.

A fotografia de 1997, mostra uma casa em taipa de mão. Em primeiro plano, vê-se um fogão externo, coberto. Ao lado direito, mais ao fundo, um painel solar instalado por um programa estatal. A partir de Iporanga, chega-se ao lugar denominado Praia Grande subindo pelo rio Ribeira, único acesso até então. Imagem: Silvio Luiz Cordeiro.

A partir da cidade de Iporanga, chega-se ao lugar denominado Praia Grande subindo pelo rio Ribeira, único acesso à comunidade até então. A fotografia (1997) mostra uma casa em taipa de mão. Em primeiro plano, vê-se um fogão com seu tacho sob cobertura. Ao lado direito, mais ao fundo, um painel solar fotovoltaico instalado por um programa estatal. Imagem: © Silvio Luiz Cordeiro.

Com o puxirão ou a reunida — nomes locais para designar a mobilização coletiva para um trabalho entre os vizinhos — atualizava-se o exercício da ajuda mútua, celebrada ao final com uma festa preparada pela família, ou pessoa que precisou de muitas mãos, a cada nova coivara (técnica indígena), plantio, colheita ou até para se construir ou reparar a morada, por exemplo da taipa de mão, que requer, frequentemente, ser refeita.

Etapas de construção de uma casa com paredes preenchidas por taipa de mão. Desenhos: Silvio Luiz Cordeiro.

Etapas de construção de uma casa com paredes preenchidas por taipa de mão. Desenhos: © Silvio Luiz Cordeiro.

A partir dos estudos realizados no Vale do Ribeira por Cordeiro entre os anos de 1994 e 1998 — no contexto de seu projeto de iniciação científica, então orientado pelo arquiteto Carlos Zibel Costa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP — foi produzido entre 1997 e 1998 o documentário Taipa de Mão, Casa de Caboclo 4, dirigido por Luiz Bargmann, documentarista do Laboratório de Vídeo da FAU USP (VideoFAU).

A fotografia mostra a travessia do rio Ribeira, durante uma das viagens ao vale, para estudar o habitat das antigas comunidades. Aqui, para se chegar a Ivaporunduva em 1994, a partir da margem direita do rio, acenava-se até que algum morador da comunidade quilombola, situada a frente, na margem oposta, viesse com uma canoa a remo, esculpida num tronco de árvore (Guapuruvu). Embarcava-se. E, assim, o canoeiro atravessava novamente o rio, levando ao povoado, sejam os moradores, sejam os poucos visitantes, a exemplo de Silvio Cordeiro, na borda da grande canoa. Imagem: Luciana Siqueira.

A fotografia (1994) mostra a travessia do rio Ribeira, durante uma das viagens de Silvio Luiz Cordeiro ao vale para estudar o habitat das antigas comunidades. Na época, para se chegar ao povoado quilombola de Ivaporunduva, a partir da margem direita do rio, acenava-se para algum morador desta comunidade, então situada na margem oposta. Uma pessoa assim vinha, numa grande canoa esculpida em tronco de árvore (por exemplo, o Guapuruvu). Imagem: Luciana Siqueira.

 

Silvio Luiz Cordeiro

Transver, 2018


Notas


  1. V. Negros da Terra – índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. Nesta obra essencial, John Manuel Monteiro ilumina a historiografia do primeiro século da colonização, ao revisitar o tempo das primeiras vilas fundadas na Capitania de São Vicente, especialmente São Paulo de Piratininga. No avanço da conquista, as incursões de apresamento indígena movidas pelos chamados bandeirantes, assim como a atividade missionária dos jesuítas, ações conflitantes entre si, transformaram antigas relações entre as etnias indígenas que habitavam o vasto território em conquista. Se no início da colonização, aquelas alianças — assim como a de franceses e certos grupos tamoio e tupinambá, por exemplo da breve França Antártica, colônia estabelecida no Rio de Janeiro em 1555 — revelaram-se úteis (sejam aos interesses do colonizador europeu, sejam aos interesses daquelas etnias indígenas diante dos seus antigos rivais), em breve elas degradaram, com impacto destrutivo às sociedades nativas. Muito mais impactante que o escambo praticado pela atividade das primeiras feitorias instaladas no litoral, o cultivo extensivo de canaviais e a produção de açúcar nos engenhos — motores da colonização efetiva do território — logo demandaram a exploração da mão-de-obra indígena; e o apresamento praticado pelos paulistas revelava-se como fator subsidiário essencial desta incipiente economia, ainda que proibido por leis régias, sempre cambiantes e muito ambíguas.
  2.   Na arquitetura vernácula em Portugal, encontram-se remanescentes do chamado tabique — ripas horizontais pouco espaçadas formando vãos preenchidos por barro — em moradas do norte de Portugal (técnica construtiva praticada, por exemplo, em Trás-os-Montes e Alto Douro) e geralmente associada à tectônica em pedra (como nos sobrados, onde o térreo encontra-se erigido em cantaria e, sobre a estrutura de pedra, eleva-se o andar em tabique). Na África, a arquitetura de terra — muito presente e difundida — emprega várias técnicas, praticadas por diversas culturas no tempo, como testemunham, por exemplo, desde os antigos adobes encontrados em sítios arqueológicos egípcios ao casario no sul da Ilha de Moçambique, construído em taipa de mão e cobertura com folhas de palmeira.
  3.  Da crônica jesuítica quinhentista, conforme a cópia em latim de uma carta redigida por José de Anchieta em São Paulo de Piratininga (setembro de 1554), sabemos que no lugar chamado por Pátio do Colégio, núcleo histórico da fundação da cidade de São Paulo, índios tupiniquim da aldeia de Tibiriçá — o grande cacique aliado dos portugueses na Capitania de S. Vicente — construíram uma casa “feita de barro e paus, coberta de palha” (“luto et lignis contexta, paleis coperta”) destinada a abrigar os jesuítas que lá constituíram a base para o novo aldeamento da Companhia de Jesus, estabelecido serra acima.
  4. Vídeo premiado em 1998 na I Mostra MIS de Vídeo, Museu da Imagem e do Som, São Paulo